domingo, 24 de abril de 2011

A terceira margem do lago



A relação entre o comportamento social e os elementos da natureza constitui um instrumento intrínseco da literatura na árdua tarefa de desvendar os sentimentos do mundo. Nesse singelo encargo, o compositor russo Tchaikovsky vitalizou "O Lago dos Cisnes", cuja tônica visava a desmistificar as múltiplas facetas humanas, transpondo-as na harmonia dual dos conflitos: os cisnes interiores.

Dividida em quatro atos num cenário bucólico, o auto alcança a máxima nos dois presentes concebidos ao príncipe Siegfried no seu aniversário: uma besta - típica arma de caça e guerra do século XVI - e a mulher que lhe mais agradasse no reino. A simbolização das oferendas traduz a visão dicotômica dos relacionamentos, sugerindo a ideia de sua contratualização; ou seja, o "ser e estar" cedendo espaço ao "ter e ficar" à medida que o porte da balestra é metaforizada como meio pelo qual a realeza consquistaria o amor real.

O momento epifânico desenvolve-se no lago do bosque, região pertencente ao mago Rothbart, no qual o príncipe descobre que sua amada Odette é acometida por um encanto - posto que ela assume a forma de uma ave de rapina branca no diurno e, às noites, retorna às feições humanas. Temendo perder sua escrava, o bruxo envia ao nobre um cisne negro personificado na imagem da bela feiticeira Odile, cujas semelhanças iam da proximidade dos nomes às características físicas; a consequência desse desvario, por conseguinte, foi única: a morte e vida (quase severina) do amor.

Como boa manifestação artística, o suspense "O Cisne Negro" de Darren Aronofsky explora um constante diálogo com o balé dramático de 1877. Isso porque na peça e na película o cisne branco representa o que Freud denominou de lado natural do ser - um mix entre ingenuidade, bondade e pureza, atrelada à talentosa Nina Sayers (Natalie Portman) -; e o negro contempla o seu estado social - no qual agrega a malícia, o ludibrio e a sensualidade, incorporada na figura da libertina Lilly (Mila Kunis).

De enredo propositamente confuso, angustiante e ilusionista, o forte teor psicológico atinge seu ápice na seleção da nova substituta do cisne negro, até então protagonizado por Beth MacIntyre (Winona Ryder) que se aposentará. Nina vê na situação a oportunidade que sempre almejara: encenar a personagem de maior prestígio sobre a qual ela nada conhecia e com a qual o diretor da companhia Thomas Leroy (Vincent Cassel) não a incentiva. Afinal, Nina é a típica aluna-prodígio, extremamente técnica, entregue mais de corpo e menos de alma ao ballet e cujos passos sinuantes nunca entram em descompasso; essa exarcebada disciplina, contudo, não se compatibiliza com o tão sonhado papel.

A relação frágil entre Nina e sua mãe Erica Sayers (Barbara Hershey) parece em cenas em que esta trata aquela como uma criança: vestindo-a, pondo-a na cama, cortando as suas unhas (ou garras?). Porém, há a falta da triangulação familiar: a figura de Édipo. Não se fala em pai; num primeiro momento, Thomas ocupa um papel masculino para Nina, à proporção que a incentiva sexualmente, parecendo desejar a mulher que Nina tornar-se-ia. Thomas, no entanto, incita apenas a bailarina que há em Nina, exigindo da "me-Nina" a perfeição - não a que ela conhece, da ação recatada, assexuada e exímiamente doce -, e sim aquela de ordem sedutora, espontânea e expressiva.

Cisne branco e cisne negro. Sístole da morte e diástole da vida. Princípios do prazer e da realidade. O corpo mexe e o espelho não. Ao imaginar uma briga com Lilly - por quem se apaixona por um ínterim-, e ao jogar os bichos de pelúcias no lixo, o espectador imagina que a imagem da luta dela é apenas consigo. É nessa tensão interioriana que ela encarna o cisne negro, precisando até mesmo matar Lilly para fazer existir a própria personagem em sua alma.

Essa sucessão de acontecimentos representa o lado suplantado do cisne negro revelando-se "perfeita-mente" - pois, mais do que interpretar, ela se torna paulatinamente o próprio cisne. Dos dedos dos pés às asas que ensaiam aparecer em suas costas, é a busca pela literal perfeição. “Eu me senti perfeita” é a apoteose do sentir: ela consegue sentir-se assim; contudo, o perigo de alcançar este sublime estágio é uno: não mais precisar viver.

Parafraseando Freud, a civilização começa com a repressão. E é essa censura que instiga Nina a travestir seu lado de cisne branco, enaltecido pela superproteção de Erica, na sua face diamedralmente oposta. Por meio das críticas do professor Thomas, da autoexigência e do peso de seu talento nato contrapondo-se à carreira frustrada de bailarina de sua mãe, Nina aos poucos transfigura nessas constantes restrinções e na sua própria limitação profissional e pessoal o ideal de que mais necessita - a busca pela liberdade, na tentativa de conhecer a personagem e a si.

Não por acaso, Sartre enuciou que "a existência precede a essência". O prefixo -ex menciona o "exterior"; isto é, a possibilidade antrópica de situar-se fora de si, visando à reflexão: tanto no espelho (re-educando o olhar próprio), como nas profundezas do íntimo pensamento, o objetivo é compreender-se centripetamente (de fora para dentro), para então alcançar a essência plena. Enquanto essa idoneidade sobrava em Lily, carecia em Nina - a qual depositou nessa ausência a fonte de sua aspiração e superação nos palcos da vida.

Na literatura, lago significa vida. E este só possui duas margens. Na produção, entretanto, há a sugestão de uma terceira, caracterizando a estética do realismo fantástico - uma, representada pelo cisne branco; outra, percebida pelo cisne negro; e a última, desembocada no centro do lago. Este é, portanto, formado por um tripé cujos elementos norteiam a vida: afinal, ambos tem a sua nascente (estado natural), os seus meandros (estado social) e a sua foz (o estuário do equilíbrio d'alma).

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